Lorena Kreuger: “Quando o destino levou meu pai, e me jogou o negócio da família no colo, a única certeza que eu tinha era de que não tinha a menor ideia do que fazer” (Foto: Claus Lehmann.)
Há sete anos, meu pai, Lars Kreuger, perdeu a batalha que lutou por longos 30 meses contra um câncer. Ele nos deixou em 2008. Tinha 54 anos, e era um pai e um empresário dedicado – tocava há 26 anos o estaleiro Kalmar, fundado por meu avô, Erik Kreuger, em 1982. Eu tinha 23 anos e estava no último ano da faculdade de Design Industrial, sem muita ideia do que faria com minha vida e minha carreira.
A perda de meu pai foi um baque para a família e para a empresa. E para mim também. Como na maioria dos casos de câncer, no entanto, a dor é diluída e assimilada ao longo de um período de tempo, a partir de quando a gente começa a aceitar que a pessoa não estará conosco por muito mais tempo. No nosso caso, conseguimos nos preparar espiritualmente para a partida de meu pai. Mesmo assim, foi difícil saber o que fazer, tanto no plano pessoal quanto no plano profissional.
O estaleiro Kalmar sempre foi reconhecido no Brasil inteiro pelo seu trabalho artesanal na construção de embarcações de lazer em madeira. A empresa ganhou fama por trabalhar com o método de marcenaria naval moderna com alto padrão de acabamento – um trabalho artesanal, feito a mão, por mestres. Com o passar do tempo, a empresa ganhou reconhecimento por manter a qualidade de seus serviços e por não ceder às pressões do mercado náutico, com a presença cada vez maior de materiais compósitos e embarcações fabricadas em série, de custo muito menor.
Só foi possível manter a nossa arte viva devido ao bom trabalho desenvolvido por um time leal, competente e comprometido. Esse foi um dos legados de meu pai. Depois de 26 anos à frente da Kalmar, ele nos deixava como herança uma empresa forte e saudável, com reputação e mercado. No aspecto administrativo, no entanto, era preciso evoluir. Ou nossa sobrevivência poderia ficar ameaçada. Em meio às exigências de monografia, projeto final e estágio, decidi que iria assumir a empresa, e que me dedicaria a ela integralmente após a minha graduação.
O estaleiro Kalmar foi fundado dois anos antes de eu nascer, na cidade de Itajaí, no litoral de Santa Catarina, onde sempre morei. Quando passei no vestibular, me mudei pra Florianópolis e fiquei lá por 6 anos. Fui criada no mar. Sempre morei a menos de duas quadras da praia, e desde muito pequena convivo com o sabor da água salgada nos lábios.
Em família, nosso tempo livre era dedicado a velejar, surfar, conhecer novas praias, de forma que a construção de barcos era mais um elo que nos ligava ao mar – a nossa paixão.
Mas eu nunca cheguei a trabalhar com meu pai. Sempre fui orientada a me dedicar integralmente aos estudos enquanto essa fosse a minha profissão – estudante. A morte de meu pai acelerou uma série de processos e decisões. Decidi que iria assumir a empresa. Um desafio completamente novo.
Não cogitávamos vender a empresa. Talvez houvesse outra solução, mas eu caí dentro antes de elucubrarmos muito. Uns quatro meses depois de meu pai morrer, tive uma conversa com a minha mãe, que tocou a empresa nos primeiros meses. Ela comentou comigo que não iria assumir o negócio – ela tem uma carreira brilhante na área acadêmica da saúde. Concordei com ela. E disse que assumiria.
Meu avô havia morrido em 2001, aos 90 anos. Minha irmã estava trilhando carreira na área de fotografia de cinema. Eu era a única que tinha perfil para o cargo. Meu pai era muito simbólico – era inclusive chamado de “pai” pelos funcionários. A Kalmar tinha que ficar conosco. A empresa era da família e a família me apoiou.
Meu primeiro passo foi redirecionar a minha monografia, ainda em estágio de definição de tema, para algo que envolvesse a empresa, para que eu pudesse resolver duas coisas de uma vez: concluir o curso e aprender sobre o que seria o meu trabalho dali a míseros seis meses. Havia 15 funcionários e cinco projetos esperando por mim.
Nesse meio tempo, o Kalmar foi seguindo no embalo. Tínhamos uma equipe preparada para tocar a empresa sem meu pai no curto prazo, administrando as obras em andamento, mantendo o fluxo de caixa e a rotina da empresa. Eu deveria entrar em cena para fechar novos negócios e ser a nova diretora, a terceira geração da família à frente do negócio, confirmando para o mercado que o Kalmar se manteria vivo, operando como sempre.
Nos meses antes de me formar, me envolvi em alguns contatos comerciais e passei a frequentar o escritório, fazendo o trajeto Itajaí/Floripa mais vezes do que de costume. No primeiro ano sem meu pai, o Kalmar conseguiu se manter. E eu me preparei como pude para assumir o comando da empresa.
Em 2009, passei a tocar oficialmente o negócio, com a clara noção de que precisaria de tempo para me adaptar e para aprender. A única certeza que eu tinha era de que não sabia o que estava fazendo. Não tem como negar: eu não fazia ideia de onde estava me metendo. Mas tinha plena consciência disso. E também não tinha muita escolha. Era respirar fundo e seguir adiante. Uns anos depois, um professor me explicou que isso tem até nome, se chama “ignorância consciente”.
Desde então, um sentimento se criou dentro de mim (e talvez os nascidos em janeiro me entendam bem): o Kalmar virou a minha missão – e se é para fazer, vai ser com sangue nozóio. Levo tudo muito a sério. Me comprometo com as responsabilidades desde muito cedo. E o que poderia ser mais sério, que responsabilidade poderia ser maior do que tocar a empresa, com um quarto de século de sucesso, fundada por meu pai e por meu avô? Embarquei e ajustei as velas.
De lá até hoje, sinto que naveguei por muitos mares a bordo do Kalmar. Uma travessia ousada. Tenho certeza de que não naufraguei porque meu pai calçou a empresa numa base sólida: uma equipe, que oscila entre 15 e 20 talentos, dependendo da demanda, que está conosco há muito tempo e que me receberam com muito respeito. No início, me sentia intimidada – como liderar gente que sabia do meu negócio muito mais do que eu?
Durante o primeiro ano, foquei em absorver tudo o que podia. Aos poucos comecei a assumir as funções comerciais, de atendimento a clientes e de apresentação de orçamentos. Era interessante ouvir dos outros coisas que meu pai costumava dizer: “quem tem que vender o barco é o dono do estaleiro”, referindo-se à decisão de termos um representante ou não.
Eu tentava me envolver ao máximo com a produção dos barcos e com as reformas em si, mas sentia que aquela parte do negócio estava em boas mãos. Então trilhei o caminho da liderança e da estratégia, mais do que do aprendizado prático da fabricação. Meu pai sabia fazer um barco com as próprias mãos, eu não. Comecei a perceber que não precisava tentar ser igual a ele para ser relevante ao negócio.
Conseguimos manter a nossa credibilidade e fomos sobrevivendo a essa transição precoce. Depois de uns meses, comecei a sentir para valer o peso que pelos próximos seis anos eu carregaria nas costas: ser responsável por tudo – e por todos. Se o prazo estiver errado, se o orçamento for mal elaborado, se o serviço ficar mal feito, se não houver dinheiro em caixa, se o telhado não estiver firme, se o estoque não estiver bem controlado, se nos faltar serviço mês que vem, se os funcionários estiverem insatisfeitos, se estivermos errando na divulgação. Era tudo comigo. Todos os “se”. Quando você é o dono, mesmo quando você delega para gente de confiança, como eu tinha ao meu redor, a responsabilidade final é sua.
Às vezes me sentia no comando de um veleiro em mar aberto, vendo a tempestade se formar no horizonte, um mau tempo muito mais severo do que aquele que em tese poderíamos suportar. Então eu só firmava as mãos no leme. E tocava adiante. Porque estávamos em ponto de não-retorno. E se só podíamos contar comigo era comigo que contaríamos.
A convivência com essa pressão impactou minha saúde. Sempre fui uma pessoa ansiosa. Meu comprometimento me fazia querer controlar tudo, para que nada saísse errado. Compreendia que aquele esforço todo era apenas a minha missão – algo que eu tinha que desempenhar. Isso, é claro, gerou um desequilíbrio geral. Vivi picos de estresse e ansiedade, em que tinha o sono constantemente interrompido.
Era perseguida por calafrios sempre que repassava mentalmente algumas situações mais desafiadoras. E não conseguia me desligar dos problemas da empresa. Sentia muito medo. De falhar. De tudo que podia não dar certo. Sofria de enxaquecas. Às vezes sentia sono nas horas erradas – era uma espécie de escapismo. Muitas vezes fantasiava com ser apenas uma estagiária ou uma analista júnior. Foi assim, na porrada, digladiando comigo mesma e vivendo a vida como ela é, que deixei de ser uma menina para me tornar uma mulher. E que deixei de ser a “filha do dono” para me transformar em “dona” – com tudo de bom e de ruim que isso acarreta.
Em paralelo ao vendaval de emoções dentro de mim, havia projetos em andamento, obrigações trabalhistas a honrar, burocracias a cumprir. A roda estava girando e aquela era a minha profissão. Era aquilo que eu tinha que fazer. E era aquilo que eu queria fazer. Mesmo sem o conforto de um emprego com menos responsabilidades. Mesmo tendo que aprender a lidar com todas aquelas angústias. Manter o Kalmar vivo significava para mim, de algum modo, manter meu pai vivo. Isso era forte demais. Mais forte do que qualquer problema que eu pudesse ter.
Pensei em procurar um psicólogo para me ajudar a lidar com aqueles sentimentos. Acabei tentando a acupuntura. O que me fez muito bem. As agulhas regularam minhas crises de ansiedade, colocaram meu sono no lugar – de modo que até hoje visito meu terapeuta duas ou três vezes por anos para apertar uns parafusos, como ele gosta de dizer.
Um tempo depois, ficou claro para mim que eu estava me afastando de coisas que amava fazer: os esportes no mar e as atividades ao ar livre. Durante muitos anos, competi na vela, surfei e frequentemente estava procurando novas trilhas para fazer.
É um erro comum quando a gente entra de cabeça num projeto empresarial – deixamos de dar prioridade a coisas essenciais, que nos fazem bem, em nome de dedicar cada vez mais tempo e energias ao trabalho. Em 2013, encarei uma aventura a bordo de um veleiro. E isso resultou no meu casamento, em 2015. Se eu não tivesse me permitido aquela descompressão, não teria encontrado meu marido. Só isso.
Também em 2013, apostando ainda mais na busca do equilíbrio, incorporei o Yoga à minha rotina. Foi uma bênção em minha vida. Aprendi a identificar e a separar muito bem a Lorena e a Lorena do Kalmar. São dois papeis bem distintos, que durante muito tempo eu tratei como uma coisa só. Isso tornou meu dia-a-dia mais harmônico e me permanecer firme, mas confortável, dentro do mesmo esforço.
A maturidade que fui ganhando aos poucos se transformou em ensinamentos para toda a vida. Aprendi a lidar com as adversidades, não entrar em pânico e a conviver com o surgimento constante de problemas. A vida é essa – resolver problemas. Sem desespero.
Passei a apreciar muito as fases boas, pois elas não durariam para sempre. Aprendi o significado de “não desistir nunca”. Insistir é mandatório. Parei de alimentar a raiva e de me sentir frustrada, pois percebi que esse tipo de reação consome uma energia gigantesca, gera sensações péssimas e não serve pra nada, além de fazer um tremendo mal à saúde.
Aprendi que tudo se resolve com calma, bom senso, equilíbrio e tempo. Descobri o preço de se administrar uma empresa. Mas também saquei que nada vem de graça. E que tudo tem um preço. Especialmente aquelas coisas que mais queremos. Quando a situação se mostra difícil, a primeira coisa que faço é perguntar: “OK, como resolvemos?” Ou então: “Que outra solução podemos dar?” Culpar governo, mercado, economia, o sistema, ou a nós mesmos, é pura perda de tempo.
Como no comando de um veleiro, temos que estar atentos a todos os sinais: as nuvens, as ondas, a pressão atmosférica, o vento, para calcular o próximo movimento em nossa trajetória. Vaiar a tempestade não resolve a tempestade. Se esconder dela também não. É preciso abrir os olhos, estar atento, pois a verdade é que as coisas, na maioria das vezes, acontecem da forma mais natural possível. E contra isso não podemos lutar.
Em sete anos de dedicação à empresa, investi na criação de um departamento de marketing, que alinhou toda a nossa estratégia de vendas e comunicação. Também desenvolvemos um trabalho no planejamento estratégico da empresa, usando todas as metodologias mais recentes dessa disciplina. Orientei o departamento de produção na criação de novos métodos de controle de horas de trabalho aplicados à marcenaria – precisamos tornar o artesanal mais gerenciável, sem perder a essência da nossa arte.
Também reforcei o RH, para garantir apoio à equipe, não economizando esforços para criar um ambiente de trabalho gentil, e preservando o clima familiar da empresa. Criei uma marca de móveis residenciais na expectativa de diversificar nossa atuação no mercado, e também ampliei e formalizei uma linha de produtos esportivos. Em 2014, completei minha pós-graduação em gestão empresarial, porque nunca dá para parar de aprender. Ainda mais eu, que estou só começando.
Hoje, com 30 anos, vivo um momento de alegria pelas decisões que tomei. Consigo reviver as curvas da estrada que se ofereciam à derrapagem e estou feliz com o sentimento de que me saí bem e de que tudo valeu a pena.
Tenho muitas ideias novas. E perspectivas de trabalho um pouco diferentes para o futuro próximo. Estou na busca de algumas realizações pessoais que nestes ficaram hibernando desde que assumi a Kalmar. Sou uma pessoa de fazer, adoro planejar e colocar coisas em prática. Essa trajetória até aqui foi um treinamento para dominar o medo do futuro. Hoje, me sinto preparada para enfrentar qualquer aventura que o mundo colocar à minha frente. Aliás, estou muito curiosa para saber o que vai ser!
Lorena Kreuger, 30, é diretora do estaleiro Kalmar. Você pode compartilhar mais de suas histórias e reflexões em seu site.
Texto publicado originalmente no site do Projeto Draft
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